A jornada de trabalho que chegava a durar 16 horas por dia, o excesso de responsabilidades e o sentimento de viver em função do emprego foram cruciais para que Juliana Ramos de Castro, de 41 anos, desenvolvesse uma síndrome de burnout.
Os primeiros sinais apareceram, em 2020, quando a nutricionista trabalhava como autônoma.
“Na época, acreditava que o que estava sentido era crise de ansiedade e fui levando o consultório até conseguir um trabalho em uma empresa em meados de 2022”, conta Juliana.
Quando assumiu um cargo de gerente, com uma jornada de trabalho extenuante, os sintomas, que até então oscilavam, tornaram-se frequentes.
“Comecei a sentir um cansaço fora do normal, onde mesmo descansando o fim de semana todo, não me recuperava”, diz ela.
“Ao mesmo tempo, eram constantes as dores no peito, tontura, crises de choro, confusão mental e isolamento social. Não havia um gatilho para acontecer, simplesmente vinha, em qualquer lugar e momento.”
Ao procurar ajuda médica, Juliana descobriu que o que acreditava ser ansiedade era, na verdade, burnout.
Essa síndrome ocupacional é causada por um estresse crônico na vida profissional e se caracteriza também, além da exaustão, por um sentimento de negatividade em relação ao trabalho e uma piora do desempenho.
“Fiquei surpresa, fui afastada pelo médico psiquiatra do trabalho por 60 dias. E quando voltei, resolvi pedir demissão e mudar de área”, conta Juliana, que hoje trabalha como analista de um escritório de advocacia, um ambiente de trabalho que ela considera “mais saudável”.
Em 2023, 421 pessoas foram afastadas do trabalho por burnout — é o maior número dos últimos dez anos no Brasil, segundo dados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), do Ministério da Previdência Social.
O aumento ocorreu, principalmente, durante a pandemia do coronavírus. De 178 afastamentos por burnout, em 2019, o Brasil passou para 421, em 2023, um aumento de 136%.
Em uma década, o número de afastamentos por este motivo cresceu quase 1.000%, como mostra o gráfico abaixo.
Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, três fatores ajudam a explicar este crescimento de diagnósticos de burnout no país:
Maior conhecimento da população sobre transtornos e síndromes relacionados ao trabalho, principalmente, a partir do reconhecimento da Organização Mundial da Saúde (OMS) do burnout como uma síndrome ocupacional;
Maior nível de cobrança sobre trabalhadores no ambiente organizacional, o que culmina em pressão e estresse, desencadeadores de transtornos e síndromes;
E confusão de especialistas na hora de identificar se o paciente tem burnout ou outros transtornos mentais relacionados ao trabalho.
Hoje, estima-se que 40% das pessoas economicamente ativas sofram de burnout, aponta Alexandrina Meleiro, médica psiquiatra e porta-voz da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT).
“Mas nem todos os casos são identificados”, diz a especialista.
No Brasil, as únicas estatísticas oficiais disponíveis em relação à síndrome de burnout são contabilizadas pelo Ministério da Previdência Social, que apenas afere os afastamentos do trabalho por mais de 15 dias.
Os afastamentos por burnout por menos tempo não são contabilizados nas estatísticas oficiais.
Além disso, segundo Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), atualmente, uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) estabelece que o médico é obrigado a provar que há uma relação entre o trabalho e o esgotamento profissional.
“Assim, pelo CFM, o médico psiquiatra somente pode afirmar que o paciente tem burnout se visitar pessoalmente o local de serviço e fizer nexo causal”, diz Silva.
“Atendimentos apenas em consultórios não podem fazer tal diagnóstico.”
O que explica o aumento de diagnósticos?
Bruno Chapadeiro Ribeiro, pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Psicologia, Organizações, Saúde, Trabalho e Educação (Laposte) da Universidade Federal Fluminense (UFF), diz que o Brasil enfrenta atualmente uma epidemia não apenas de burnout, mas também de transtornos mentais relacionados ao trabalho — o INSS contabiliza casos de burnout e de transtornos mentais e comportamentais separadamente.
“Nota-se essa maior incidência não só clinicamente, mas também nas pesquisas científicas que fazemos e nas perícias trabalhistas”, afirma Ribeiro.
“A judicialização sobre a questão, por exemplo, aumentou 72% na pandemia.”
Dados do Ministério da Previdência Social apontam que, no ano passado, 27 trabalhadores foram afastados por dia devido a transtornos mentais e comportamentais relacionados ao trabalho.
Um total de 10.028 auxílios doenças foram concedidos por este motivo.
Para Ribeiro, o aumento de diagnósticos de burnout e de transtornos mentais relacionados ao trabalho ajuda a explicar um segundo fenômeno que ocorre no Brasil: o do crescimento de pedidos de demissão.
“Temos atravessado um momento histórico em que mais uma vez as relações e formas de trabalho têm sido questionadas, principalmente, por uma juventude de classe média insatisfeita com as formas com que o trabalho se organiza”, afirma Ribeiro.
“Nesse sentido, assistimos a fenômenos tais com o quiet quitting ou great resignation — termo utilizado para descrever a onda de demissões voluntárias do pós-pandemia — em que jovens altamente escolarizados pedem demissão de seus trabalhos por não verem mais sentido do trabalho e estarem à beira de um colapso por exaustão.”
Meleiro avalia que isso ocorre devido a uma maior demanda por performance sobre os trabalhadores, em um curto espaço de tempo.
“A política econômica globalizada reduz custos com enxugamento de profissionais na empresa, assim, quem fica acaba trabalhando mais”, explica Meleiro.
“Além disso, com a expansão da informatização, sem o funcionário ter tempo de se atualizar, um duplo estresse emocional e físico é gerado no trabalhador. Isso acaba por gerar um aumento de diagnósticos de transtornos mentais relacionados ao trabalho.”
Descrito pela primeira vez em 1974, pelo médico psicanalista alemão-americano Herbert Freudenberger, o termo burnout é oriundo de “burn out”, que, em inglês, significa “queimar por completo” ou “esgotamento”.
Ficou mais conhecido entre os trabalhadores a partir de 2022, quando a síndrome foi incorporada à lista de classificação internacional de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Entrou na lista como um dos fatores que influenciam o estado de saúde de uma pessoa ou a leva a buscar os serviços de saúde — mas que não são classificados como doenças ou condições de saúde.
Agora, quem é diagnosticado com burnout tem as mesmas garantias trabalhistas e previdenciárias previstas para doenças do trabalho, como lesão por esforço repetitivo (LER) e transtornos de ansiedade.
“Assim, o que anteriormente era entendido com um quadro de ansiedade aguda ou crônica relacionado ao trabalho, hoje, muitas vezes com o reconhecimento oficial da OMS, médicos diagnosticam como burnout”, ressalta Meleiro.
“Isso faz com que tenhamos essa impressão de mais casos.”
Segundo Ana Maria Rossi, presidente da International Stress Management Association no Brasil (Isma-BR), organização dedicada à pesquisa, prevenção e tratamento do estresse, há um segundo fator: os diagnósticos equivocados de burnout.
“É muito comum vermos situações em que o burnout é confundido com a depressão no trabalho. Isso faz com que esse aumento de burnout também seja reflexo desse número de diagnósticos equivocados”, afirma Rossi.
Sintomas e tratamento do ‘burnout’
Rossi explica que, para ser burnout, primeiro, os sintomas precisam estar relacionados ao trabalho.
“Dessa forma, um estudante ou gestante que não esteja no mercado de trabalho, por mais que estejam exaustos ou com sintomas similares aos da síndrome, não podem ter burnout, mas, sim, outros transtornos mentais, como a depressão.”
A especialista explica que, para o burnout ser diagnosticado, o paciente precisa ter ao menos uma das três dimensões que caracterizam a síndrome:
• Exaustão emocional: um cansaço profissional excessivo. Ocorre quando a pessoa percebe não tem mais a energia que seu trabalho requer.
• Despersonalização: uma perda de sentimentos em relação a outras pessoas no trabalho, equipe ou clientes. É uma dimensão típica do burnout que o diferencia do estresse.
• Reduzida realização profissional: sensação de insatisfação que a pessoa passa a ter com ela própria e com a execução de seu trabalho, gerando sentimentos de incompetência e baixa autoestima.
Elton Kanomata, médico psiquiatra do Hospital Israelita Albert Einstein, destaca que essas dimensões podem ser identificadas pelo próprio paciente a partir de sintomas físicos, cognitivos e emocionais.
“Dentre os sintomas físicos, é comum os pacientes com burnout terem fadiga persistente, insônia, tensão e dores musculares, cefaleia, sintomas gastrointestinais e aumento ou perda de apetite”, explica Kanomata.
Com relação aos problemas cognitivos, o psiquiatra ressalta a dificuldade de concentração e raciocínio, sensação de estafa mental e lapsos de memória.
“Já na esfera emocional, é comum o paciente ter esgotamento emocional, baixa autoestima com relação às competências e capacidades, sentimento de fracasso, desânimo, desmotivação, impaciência, irritabilidade, diminuição ou perda de interesses antes prazerosas, sintomas ansiosos e fóbicos em relação ao ambiente de trabalho ou a pessoas e elementos que remetam ao trabalho”, diz Kanomata.
O tratamento da síndrome de burnout é feito com o apoio de profissionais por meio de psicoterapia e medicamentos (antidepressivos e/ou ansiolíticos).
Segundo especialistas, os primeiros efeitos são sentidos pelo paciente, entre um e três meses após o início do tratamento.
“Por isso, o tratamento deve ser individualizado e estruturado após uma avaliação detalhada da saúde física e mental de um profissional da saúde”, diz Elton Kanomata, do Albert Einstein.
Antônio Geraldo da Silva, da ABP, também ressalta quem tão importante quanto a terapia e o uso de medicamentos, é a mudança no estilo de vida do paciente.
“Praticar esportes, desenvolver estratégias para gerenciar o estresse, ter uma boa qualidade de sono, realizar atividades de lazer e ter tempo de qualidade com familiares e amigos é muito importante neste processo”, pontua Silva.
O especialista ressalta que, quando não tratado, o burnout pode levar ao desencadeamento de outros transtornos mentais.
‘Muitos achavam que era frescura’
Além dos sintomas físicos, cognitivos e emocionais, é comum que pessoas com burnout enfrentem durante o tratamento o preconceito contra síndromes e transtornos mentais — a chamada psicofobia.
A pedagoga Kátia Aparecida Mantovani Corrêa, de 45 anos, diz que, quando sentiu os primeiros sintomas de burnout, foi comum enfrentar comentários de pessoas ao seu redor dizendo que ela queria chamar atenção.
“Era difícil para muita gente entender que a Kátia proativa, polivalente sempre pronta e disposta para agir em qualquer situação, de repente deu pane. Muitos achavam que era frescura e que eu queria chamar a atenção”, diz a pedagoga.
O diagnóstico veio em 2023. Acostumada a trabalhar sem parar, no início, ela achou que os sintomas que sentia há cerca de um ano eram devido ao cansaço e estresse diário. Mas, nas férias, percebeu que aquilo não era normal.
“Lembro que não conseguia desligar meus pensamentos, mesmo de férias. Minha cabeça estava a milhão. Foi quando resolvi procurar ajuda”, conta Kátia.
Trabalhando desde os 12 anos de idade, ela diz que, em um primeiro momento, não admitiu ter burnout.
“Levei quase um ano para esse processo de autoconhecimento, aceitação e renovação. Hoje, levo a vida mais tranquila e mais concentrada. Digo que aprendi a importância de dizermos não.”
Outro problema comum são empresas que lidam negativamente com um diagnóstico de burnout, pontuam especialistas.
Isso faz com que muitos trabalhadores procurem ajuda especializada tardiamente, quando os sintomas estão mais graves ou desencadeando outros transtornos mentais, como a depressão.
O gerente de projetos Lucca Zanini, de 26 anos, diz que, quando foi afastado do trabalho pela primeira vez por não estar bem mentalmente, sua preocupação só aumentou.
“Sabia que a empresa não veria isso com bons olhos e meu maior medo era de ser demitido assim que eu voltasse”, diz Lucca.
Temor que se confirmou. Ao voltar ao trabalho, ele conta que os colegas passaram a tratá-lo de forma diferente. “Não demorou para eu ser desligado.”
A demissão fez Lucca procurar ajuda especializada. Hoje, em um novo emprego, ele diz que a vida é outra.
Atualmente, além dos medicamentos e atividades físicas semanais, Lucca diz que separa um tempo somente para família e outro para o trabalho.
“Aprendi a falar não. Não aceito mais atividades que excedam minha capacidade de trabalho. Foco em minhas responsabilidades pessoais e dou a devida importância ao que vale a pena.”
Alexandrina Meleiro, da ANAMT, ressalta que, se for comprovado que a empresa ajudou a desencadear o burnout, pode ser responsabilizada judicialmente.
“O grande desafio é comprovar isso. Algumas empresas já são penalizadas por causarem burnout no funcionário, principalmente na Europa, mas ainda é muito difícil estabelecer o nexo causal”, ressalta Meleiro.
No Brasil, em 2022, uma operadora de turismo foi condenada pela Justiça do trabalho a pagar indenização de R$ 20 mil por danos morais a uma profissional que teve burnout.
De acordo com os autos, a profissional afirmou que se sentia sobrecarregada com o volume excessivo de atividades e pelas cobranças insistentes por parte dos chefes a qualquer momento, o que foi comprovado por meio de mensagens.
Para Bruno Ribeiro, da UFF, é necessário um maior engajamento das empresas brasileiras para prevenir o burnout.
“A prevenção envolve mudanças na cultura da organização do trabalho, estabelecimento de restrições à exploração do desempenho individual, diminuição da intensidade de trabalho, diminuição da competitividade e busca de metas coletivas que incluam o bem-estar de cada um.”
Fonte: BBC News Brasil