Ao divulgar seu primeiro levantamento sobre o trabalho por aplicativos no Brasil, o IBGE investigou o que chamou de “grau de dependência” dos trabalhadores em relação às plataformas a partir de critérios como autonomia na definição do prazo e valor a ser recebido por tarefa realizada e na escolha dos clientes atendidos.
E, ainda, mapeou o quanto estratégias como oferta de bônus, sugestões de turnos de trabalho e ameaças de bloqueios influenciam na rotina desses trabalhadores.
A quase totalidade dos motoristas (97,3%) de aplicativos de transporte de passageiros relataram que o valor a ser pagado é definido pela plataforma. No caso dos apps de táxi, esse parcela é de 79,9%. Para os entregadores, 84,3%. E nas plataformas de serviços gerais – como de oferta de diaristas, encanadores, tradutores e os mais variados tipos de atividade – é de apenas 31,9%.
Já em relação aos prazos, 80% dos entregadores, 67,5% dos motoristas e 62,3% dos trabalhadores em aplicativos de táxi relataram que a plataforma determina o tempo em que a entrega ou corrida deve ser concluída. Nos aplicativos de prestação de serviços gerais ou profissionais, por outro lado, o percentual é de 27,8%.
O estudo destaca que o predomínio é de trabalhadores por conta própria nessas plataformas, o que sugere que a estratégia das empresas para captar os prestadores de serviço “não ocorre, majoritariamente, por meio de contratação direta”. No entanto, “ainda que, na grande maioria dos casos, não sejam estabelecidos vínculos empregatícios formais com as empresas que controlam tais aplicativos, há evidências de certo grau de dependência desses trabalhadores”.
Entregador de aplicativo desde o ano passado, Julio César Ribeiro, de 55 anos, enfrenta diariamente uma jornada de trabalho de 11 horas na bicicleta. Ele ganha entre R$ 80 e R$ 100 por dia, mas diz que o valor varia de acordo com sua avaliação no aplicativo.
– Se o cliente te dá uma avaliação negativa, a plataforma não te chama para entregar. Eu ganho R$ 6,50 por entrega. Teve um dia que meu “score” estava ruim e em 10 horas trabalhando só fiz duas entregas. Só recebi 13 reais nesse dia – lamenta.
O levantamento do IBGE foi feito com br nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua), em cooperação com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o Ministério Público do Trabalho (MPT).
AUTONOMIA LIMITADA
O estudo mostrou que o país tem 2,1 milhões de trabalhadores atuando em plataformas digitais. Desse total, 1,4 milhão – ou 71% – são aqueles que prestam serviços por aplicativo, principalmente como motoristas de passageiros ou entregadores de comida e produtos. Os 628 mil restantes atuam em plataformas de comércio eletrônico, vendendo produtos em marketplaces, por exemplo.
“Para todos os aspectos pesquisados, os trabalhadores de aplicativos de transporte de passageiros (exceto aplicativo de táxi) e os entregadores em aplicativos de entrega revelaram os maiores graus de dependência em relação à plataforma. Por outro lado, o menor grau de dependência foi verificado entre aqueles que utilizavam plataformas de prestação de serviços gerais ou profissionais”, afirma a pesquisa.
Segundo o estudo, os dados revelam “autonomia e controle limitados sobre o exercício do próprio trabalho, sobretudo para os trabalhadores plataformizados dos setores de transporte particular de passageiros e de entrega”.
INFLUÊNCIA NA JORNADA
No estudo, os analistas do IBGE também investigaram a influência dos aplicativos na jornada de trabalho dos profissionais, a partir de estratégias adotadas pelas plataformas como como bônus e promoções, sugestão de turnos e ameaças de punições ou bloqueios.
Entre os motoristas, 63,2% afirmaram que a jornada de trabalho é afetada por meio de incentivos, bônus ou promoções que mudam os preços, enquanto 42,3% disseram que ameaças de punições ou bloqueios realizados pela plataforma também influenciam. Ainda assim, 83,8% desses trabalhadores afirmaram ter a possibilidade de escolha de dias e horários de forma independente.
Trabalhadores dos demais tipos de aplicativos também observam que a forma mais recorrente de influência das plataformas sobre suas jornadas de trabalho ocorria por meio de incentivos, bônus ou promoções que mudam os preços: é o caso 54,5% dos entregadores, 32,2% dos motoristas de aplicativos de táxi e 13,5% dos que atuam em aplicativos de prestação de serviços gerais ou profissionais.
Para o procurador-geral do Trabalho, José de Lima Ramos Pereira, além de explicitar a forte dependência e controle das plataformas, os dados da pesquisa revelam a percepção dos trabalhadores de possuírem uma suposta liberdade de escolha e flexibilidade de jornada. Segundo ele, no entanto, é a percepção é falsa, já que estes mesmos trabalhadores são obrigados a cumprir jornadas de trabalho conforme determinado pelas plataformas, sob pena de menores recebimentos ou punições por recusas.
Já a procuradora do Trabalho Clarissa Ribeiro Schinestsck, o estudo contribui sobremaneira para fomentar o debate público em torno da regulação do trabalho em plataformas digitais:
— As estatísticas abrem a possibilidade para a criação de políticas públicas efetivas e para o planejamento da atuação dos órgãos de defesa do trabalho decente, ao mesmo tempo que demonstram claramente a informalidade nesse tipo de trabalho, a forte dependência dos trabalhadores em relação às plataformas, jornadas mais elevadas e rendimento menor do que os trabalhadores ‘não plataformizados’ do setor privado.
Analista da Tendências Consultoria, o economista Lucas Assis destaca que a pesquisa reforçou o perfil sociodemográfico de trabalhadores como motoristas e entregadores, mostrando que aqueles que se ocupam em aplicativos contam com condições mais vulneráveis.
— Há necessidade de discutir as formas e condições desse trabalho, porque a dependência dos trabalhadores com as plataformas é evidente, mas não há contrapartida social, que normalmente é trazida com a formalização, com questões como a garantia de remuneração mínima, licença remunerada e férias. O debate público precisa acompanhar essa discussão – afirma.
Já a advogada trabalhista Maria Lúcia Benhame, do escritório Benhame Sociedade de Advogados, observa que, apesar de o estudo do IBGE ter destacado pontos sobre a relação de dependência e influência das empresas na rotina dos trabalhadores, é difícil que os dados sejam usados na Justiça, em ações de reconhecimento de vínculo, por exemplo.
— É algo que pode ser lido como uma percepção, que pode se concretizar ou não na visão do juiz da ação, então cada caso é um caso — afirma: — Há necessidade de uma regulamentação desses trabalhadores, para que eles tenham uma garantia mínima de condições de trabalho e proteção previdenciária, mas adequada à realidade deles.
Fonte: O Globo